Pirilau ao vento, o rapaz corria pela praia
deserta. Mergulhava entre as algas e perseguia os peixes até às suas tocas.
Depois deitava-se na areia e deliciava-se com o calor do sol que lhe afagava a
pele. O cheiro a maresia, que lhe fazia cócegas no nariz, e o grasnar das
gaivotas misturado com o suave embalar da rebentação, deixavam-no numa espécie
de transe do qual só acordava quando ouvia o seu pai que o chamava, lá do fundo
da praia. Às vezes também subia às montanhas, caminhava entre bosques
fantásticos e nadava em lagoas de água fria e cristalina. Observava tudo com
muita atenção e, deitado à sombra de carvalhos centenários, imaginava aventuras
fantásticas.
A perguntas estranhas sobre a possibilidade de
coisas impossíveis, já estava a sua mãe habituada, no entanto, sendo os livros
a sua profissão, ela nunca desarmava, inventando respostas onde o real e o
imaginário se conjugavam num mundo – que é o da literatura – em que tudo ficava
muito bem explicado (ou não, se fosse esse o caso). Também ele desde cedo leu muito:
primeiro as bandas desenhadas e romances de ficção científica que a mãe lhe
trazia da biblioteca; mais tarde outras coisas, que aprendeu a seleccionar de
acordo com o que lhe ditava a disposição. A música também lhe enchia as
medidas; o seu pai, estudioso autodidacta e excêntrico que nunca reparou muito
nele, coleccionava discos de música tradicional de todos os povos do mundo, e
por tal facto os seus ouvidos eram frequentemente invadidos por sons estranhos
que muito o entusiasmavam. Entre os amigos, sem ser propriamente um estranho,
era tido por ser um pouco maluco, talvez por cultivar gostos que não se ficavam
propriamente pelo futebol ou pelos carros de corrida.
Depois veio o 25 de Abril e, de repente o
mundo abriu-se como mais um livro. Houve as batalhas campais nos polivalentes
do liceu e os deambulares até de madrugada pelas ruas da cidade em conversas
sobre tantas coisas que agora, mais do que nunca, se podiam descobrir.
Mas
a curiosidade era muita e ele tinha que ir ver lá, aos lugares de onde essas
coisas vinham. Mochila às costas e polegar ao alto, lá foi ele à aventura. Às
vezes sozinho, outras acompanhado, correu o mundo absorvendo tudo com uma
urgência que a idade ditava e a oportunidade aguçava. Fez dessas viagens um
modo de vida: partia na Primavera, fazia o ciclo das colheitas, que ia
intercalando com temporadas de estadias em cidades e regiões que ainda não
conhecia, e regressava para passar o Inverno com a família que, apesar de
alguma preocupação compreensível, nunca lhe impôs o que quer que fosse.
Como
seria de esperar, chegou o dia em que se cansou e achou que o melhor era voltar
à escola e estudar algo que futuramente pudesse aplicar numa profissão. Não
sabia muito bem o que fazer e, farto da cidade e das pancadarias de liceu, resolveu
estudar agricultura. Mas, apesar do seu amor pela natureza, nunca conseguiu
fazer profissão nos campos e passou mais uns anos a experimentar aquilo que ia
aparecendo, como emprego. Como sempre gostara de conduzir, foi camionista, foi
também operário, lavador de copos em discotecas, empregado de armazém, e outras
coisas que apesar de não serem propriamente muito interessantes, lhe foram
mostrando diferentes maneiras encarar o mundo; não só as que as diferentes
actividades lhe impunham, mas também aquelas que ia observando nas pessoas que
o rodeavam. De experiência em experiência, lá foi encontrando um modo de ir
fazendo coisas que lhe deixassem sempre um espaço para si; para ler, pensar,
passear, sonhar e fazer coisas que realmente lhe agradavam e que, como tal,
nunca concebera fazer como profissão; para ele, a vida sem isso não fazia
sentido.
Sempre
sem planear à partida o futuro, adaptou-se com uma grande facilidade àquilo que
os dias lhe foram trazendo. Nunca sentiu a ambição de se tornar exemplar no que
quer que fosse. Valorizou mais que tudo o sentir-se bem consigo e com os outros,
e cultivar uma curiosidade interessada por tudo em geral. Conversar sobre tudo,
sem preconceitos ou subterfúgios, era outro dos seus prazeres; pena que com o
tempo, e talvez com a progressiva falta dele, que cada vez mais se foi impondo,
as oportunidades de o fazer fossem escasseando.
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